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Livro escrito por professor do Ifal Satuba analisa a importância da religião na pós-modernidade
Obra, que tem como ponto de partida o aforismo mais polêmico de Nietzsche, será lançada na Bienal Internacional do Livro de Alagoas no dia 22 de novembro.
Dentre tantos pensadores que se debruçaram para refletir sobre religião e sua influência na vida do homem, Friedrich Nietzsche é um dos mais expressivos, sobretudo, por ser o responsável em decretar que “Deus está morto”.
E é essa expressão do filósofo alemão o ponto de partida do livro escrito pelo professor de filosofia do Campus Satuba do Instituto Federal de Alagoas (Ifal), Hugo Brandão. Mestre em Ciências da Religião e pesquisador de Nietzsche desde a época da faculdade, o docente traz em sua obra Deus está morto?! uma reflexão sobre a crise de valores pela qual passa a humanidade e o avivamento do fenômeno religioso na vida do indivíduo pós-moderno.
O livro é resultado da tese de dissertação de mestrado e, embora seja de caráter acadêmico, apresenta uma discussão filosófica que pode ser acompanhada por qualquer pessoa que tenha interesse pelo tema.
Em entrevista, Brandão revelou alguns dos pontos abordados na obra que será lançada na Bienal Internacional do Livro de Alagoas, no dia 22 de novembro. E para quem espera encontrar um autor que corrobora com tudo que o filósofo niilista defende, o professor adverte: “Vou para além de Nietzsche e defendo, ao contrário dele, a importância da religiosidade para o homem”.
Ao trazer uma das frases mais polêmicas do filósofo alemão, o que o livro pretende apresentar ao leitor?
Brandão - A obra traz uma reflexão sobre a crítica de Nietzsche à religião cristã com a proposta de analisar a recepção da “morte de Deus” no cenário religioso pós-moderno. Defendo a influência do pensamento do filósofo na vida do indivíduo contemporâneo, sua relação com a religião, a crise de valores, a persistência da religião, o reavivamento do sagrado, o crescente fundamentalismo religioso, bem como uma outra perspectiva sobre o cristianismo.
Essa é uma das frases mais mal interpretadas da filosofia. Qual o sentido genuíno?
Brandão - Ao decretar que Deus está morto, Nietzsche constatou o que estava acontecendo em sua época. Com o advento da Modernidade, marcada pelo florescimento da ciência e da tecnologia, aos poucos Deus foi perdendo sua plausibilidade como fundamento último para a sociedade da época.
Na Idade Média, por exemplo, o poder político estava atrelado à Igreja Católica e a vida como um todo se fundamentava na existência de Deus. Mesmo na Modernidade as pessoas ainda tinham seus costumes, cotidiano, futuro e a própria política explicados a partir dessa premissa. Só que naquela época, iniciou-se o movimento de ruptura com essa fundamentação transcendental, tendo como base a razão e a ciência para explicar todas as coisas.
As críticas de Nietzsche eram voltadas para uma cultura que vivia alicerçada na perspectiva de um ser metafísico, de uma verdade absoluta, com valores que oprimiam o ser humano em vez de libertá-lo. Ele considerava isso uma idiotice, e eu concordo com ele nesse aspecto.
Usa-se essa expressão nietzschiana da “morte de Deus” para fundamentar um ateísmo militante, porém o filósofo estava fazendo uma crítica à cultura de sua época e não necessariamente professando um ateísmo inconsequente.
E na pós-modernidade, essa interpretação se mantém?
Brandão - Mantém-se! A crítica de Nietzsche à sociedade e à cultura de sua época continua atual e a “morte de Deus” influenciou diretamente na religiosidade do indivíduo pós-moderno, mesmo que de forma inconsciente.
A pós-modernidade traz como grande marca a ausência de valores e a desconfiança por tudo que se apresenta como imutável e, nesse contexto, estão incluídas a religião e a ciência. Em sua época, Nietzsche já pensava sobre esse fenômeno defendendo a necessidade de desconstrução e construção de novos valores, pois, para ele, é inconcebível uma verdade plena, uma vez que a vida está em constante movimento. Nesse sentido, as religiões institucionais tiveram que se adequar a este novo cenário, bem como a religiosidade popular que ganhou nova dinâmica, fenômenos que apresentamos no livro.
Durante a leitura da obra, o leitor vai se deparar com um autor que sempre concorda com o filósofo alemão?
Brandão - O Nietzsche é o norte, mas o livro não é, necessariamente, para corroborar com o que ele diz. Vou além e discuto com autores mais contemporâneos e que enxergam a religião sobre outros ângulos, auxiliando-nos a compreender tanto a religião na pós-modernidade quanto a recepção e a influência da filosofia de Nietzsche neste cenário.
Defendo, inclusive, a importância da religião e como ela consegue se ressignificar e persistir nos dias atuais; quando Nietzsche afirma o contrário, apontando que caminha para o fim, tal como defendeu Marx e Freud.
Quais os argumentos usados no livro para defender a importância da religião?
Brandão - O sociólogo Peter Berger, em seu livro O Dossel Sagrado, afirma que a religião foi a maior ferramenta que a humanidade já criou contra a anomia (ausência de sentido, o caos). E falando em termos sociológicos, isso é extremamente importante.
Não se pode negar que a religião produz alienação, opressão e manutenção de poder das classes dominantes (domínio político e/ou econômico). Contudo, e isso defendo no livro, ela também tem um viés de libertação. Os negros no Brasil, para resistir a séculos de escravidão, precisaram cantar muito para as divindades africanas. Os índios tinham, e ainda têm, uma gama de ritos, interditos que significavam suas realidades, sem que necessariamente representasse ou fundamentasse o domínio de uns sobre outros. Tudo isso é religião, é relação com o sagrado.
A religião também apresenta um propósito de solidariedade entre os homens. Nesse sentido, podemos lembrar a atuação de pessoas como Dom Hélder Câmara, grande defensor dos Direitos Humanos e outros tantos de igual valor como Chico Xavier, Mãe Menininha do Gantois, Luther King, Mahatma Gandhi... que são, por excelência, humanistas e pacifistas. Longe de serem perfeitos, deixaram um legado para a posterioridade.
A prática religiosa conforta e proporciona convívio social. Ela gera, ainda, um sentimento de pertença, algo que é bastante buscado pelo indivíduo pós-moderno que está neste mundo fluido onde não há verdade e nem valores absolutos para ele se sustentar.
Buscando significação para a vida, as pessoas vão em busca de diversas experiências religiosas, porque, fora disso, é suicídio, é loucura, é depressão, que é o grande mal do nosso século. Com isso não estou afirmando que a religião seja a única forma de significar a existência, mas é uma das ferramentas mais eficientes que a humanidade criou.
Aqueles que defendem o fim da religião, sob os argumentos de que ela oprime, aliena e é repressora, deviam também querer o fim da arte, da literatura, da música, do esporte, pois todas essas manifestações também apresentam um viés alienante, assim como um lado libertador, de interação entre as pessoas, solidariedade, conforto existencial e tantos outros benefícios.
Então, Deus não está morto?
Brandão - Essa é uma resposta que o leitor terá ao ler o livro. Por ora, posso adiantar que Nietzsche estava correto ao atestar a “morte de Deus”, referindo-se àquele ser transcendental usado como fundamento último de todas as coisas. No entanto, persiste a perspectiva de um Deus ressignificado, que é muito mais conforto e sentido de vida. Um Deus menos burocrático, menos vingativo, menos dominador, e muito mais amoroso, complacente, encontrado bem mais em experiências religiosas do que em uma religião institucional. Em poucas linhas é impossível responder a essa pergunta, mas acredito que os leitores chegarão até suas próprias conclusões a partir das argumentações e problemáticas que trago no livro.
A ressignificação da ideia de Deus é um fenômeno da pós-modernidade?
Brandão - Posso afirmar que é um fenômeno marcante da pós-modernidade. E, para a entendermos, é preciso estabelecer a diferença entre religião institucionalizada e religiosidade.
A religião institucional é aquela representada pelas igrejas tradicionais com suas regras, dogmas, doutrinas e etc. Já a religiosidade está ligada a uma experiência individual, que independe de uma instituição, isto é, de pertencer a uma religião.
Segundo Nietzsche, o Deus defendido pelas religiões institucionalizadas morreu, pois não representa mais a medida de todas as coisas na vida das pessoas. E isso pode ser comprovado tanto pela perda de fiéis que as igrejas históricas vêm registrando, quanto pela mudança dos comportamentos religiosos na sociedade - indivíduos que vivem sua relação com o sagrado de forma cada vez mais personalizada.
É daí que se entende a perspectiva da religiosidade. As pessoas estão cada vez mais religiosas, só que a vivem de forma subjetiva. É o que o teólogo brasileiro Eduardo Cruz chama de “errantes do novo milênio”. Elas estão em busca de experiências novas, buscando Deus ou o sagrado a partir de uma perspectiva pessoal, sem aceitar a imposição de regras, sem a intermediação de uma religião institucional.
O que marca a sociedade pós-moderna é a ausência completa de valores. Bauman, renomado sociólogo polonês, diz que não há mais nada sólido, tudo é líquido. Por isso que as religiões tradicionais perderam plausibilidade e credibilidade, pois a experiência religiosa também se tornou líquida.
As religiões tradicionais já perceberam essas mudanças? E como elas estão reagindo a essas transformações?
Brandão - Certamente. Perceberam que perderam a força que tinham no passado, mas conseguiram manter sua autonomia. Defendo no livro que a religião institucional também tem se ressignificado e encontrado o seu espaço no mundo pós-moderno, com menor influência na vida cotidiana das pessoas, mas continua firme e tem mantido independência frente a outras instituições sociais.
O Sínodo das Famílias, realizado no mês de outubro e liderado pelo Papa Francisco, é uma proposta de ressignificar valores tradicionais, como, por exemplo, a comunhão para casados de segunda união, o conceito de família; ou mesmo o discurso do Papa de acolhimento dos homossexuais, seguindo a seguinte premissa: “Quem sou eu para julgar um homossexual que procura Deus?”. Isso é extremamente progressista para uma instituição com mais de dois mil anos. No entanto, não se pode ser inconsequente e achar que apenas ele, um senhor de 80 anos, poderá mudar uma instituição milenar. A realidade social e/ou uma instituição milenar não se muda da noite para o dia.
Essa mesma realidade pode ser notada em diversas religiões institucionais. Nos terreiros de candomblé, por exemplo, também encontramos ressignificações de costumes e tradições, sobretudo as que se referem a participação das mulheres nos cultos e enquanto lideranças.
Não vamos observar grandes mudanças nas religiões institucionalizadas em curto prazo, mas elas estão se adaptando e isso leva tempo. Se não fizerem isso, não conseguirão agregar esse indivíduo pós-moderno, que traz muito mais as suas convicções do que busca verdades a lhe serem dadas.
Como explicar o avanço do fundamentalismo religioso com reflexos, inclusive, na política?
Brandão - No livro, explico que o avanço do fundamentalismo religioso é, também, uma das consequências da "morte de Deus".
A humanidade perdeu o fundamento que justificava todas as coisas, o alicerce das relações. A priori, pensou que a ciência poderia preencher o vácuo deixado pela ausência desse ser transcendental. Só que isso não foi possível.
Chegamos à contemporaneidade sem Deus e, de certo modo, frustrados com a ciência. Esse cenário gerou a crise de valores que estamos vivendo agora. Diante dessa realidade, as pessoas tentam ressignificar a sua existência. Alguns, vão em busca de novas experiências religiosas; outros retornam para as referências do passado, na tentativa de reviver aquela religião tradicional com dogmas e regras milenares; ou seja, na ausência de valores, retornam aos valores tradicionais, o que chamamos de fundamentalismo religioso.
É o que vem ocorrendo com uma parcela da população brasileira: não conseguindo ressignificar a sua vida frente ao novo, retoma o passado. Encontram significado para suas existências nos valores e verdades tradicionais. No entanto, há de se destacar, isso representa uma pequena parcela. A maior parte busca ressignificar suas vidas através de novas experiências: desde as religiosas, que considero positivas (quando não se trata de retorno ao fundamentalismo), ou, infelizmente, com os entorpecentes, dentre outras formas de preencher o “vazio existencial”, entendido como falta de valores e significado para existência.
Embora possa parecer o contrário, o livro traz a ideia de que a religiosidade persiste e é importante que exista?
Brandão - É o que defendo. Na atualidade, esse fenômeno ocorre bem mais através de uma experiência religiosa individual. A perda de credibilidade das religiões institucionalizadas não é acompanhada pela diminuição da fé das pessoas. No último censo do IBGE, o número de ateus se mostrou estável, mas o número de não religiosos aumentou expressivamente. Esses não religiosos são as pessoas que acreditam em Deus, mas não professam nenhuma religião.
A crença é parte da natureza humana, seja em um ser sobrenatural ou em um ideal político, por exemplo. Os indivíduos não procuram a prática de uma religião simplesmente para fugir da realidade, como muitos acusam indiscriminadamente. Se ótimas condições de vida bastassem para a realização humana, não haveria tantos jovens cometendo suicídio no Japão, um país seguro e com índices elevados de desenvolvimento humano. Para além de todos os fatores que estão por trás dos suicídios no Japão, sem dúvida alguma, um deles é a anomia. E a religião, como já falamos, é a maior ferramenta de combate.
Ela tem um papel muito importante, pois tem a capacidade de significar a vida das pessoas, dar um sentido maior à existência. E isso, numa perspectiva social, tem implicações cruciais.
Serviço:
Lançamento do livro Deus está morto?!
Autor: Hugo Brandão
Local: Centro Cultural e de Exposições Ruth Cardoso, durante a Bienal Internacional do Livro de Alagoas.
Dia: 22 de novembro.