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Estudantes quilombolas protagonizam pesquisa sobre mudanças climáticas no Tabuleiro dos Negros
Apesar de residir na comunidade desde que nasceu, a estudante Elineide dos Santos, hoje com 27 anos, sempre esteve alheia à história do Tabuleiro dos Negros, povoado remanescente de quilombo localizado no município alagoano de Penedo. Reconhecer-se quilombola, então, era algo que passava longe da vivência da jovem, que está no 3º ano do curso técnico em Açúcar e Álcool, ofertado na modalidade integrada ao ensino médio pelo Instituto Federal de Alagoas – Campus Penedo.
No entanto, há cerca de três meses, a trajetória da relação de Elineide com sua comunidade começou a apontar para uma nova direção. O ponto de partida dessa mudança é o seu envolvimento em um projeto de pesquisa coordenado pelo Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (Neabi), que tem como objeto de estudo a dinâmica climática e suas relações com as práticas agrárias no Tabuleiro dos Negros.
A participação da aluna no estudo está permitindo-lhe não apenas conhecer e se apropriar de questões relacionadas a territórios quilombolas, enquanto espaços de preservação da identidade cultural e do meio ambiente, como também se sentir motivada e estar apta para interferir na realidade que a cerca. E nesse processo, Elineide não está só. Outros cinco estudantes e uma aluna egressa do Ifal Penedo, a maioria residente na mesma comunidade, formam a equipe de bolsistas da pesquisa, que está sob a orientação de três docentes das áreas de História, Geografia e Meio Ambiente.
“Nunca me interessei em saber nem o porquê do nome do povoado. Para mim, está sendo muito proveitoso participar desse projeto, porque ele está me fazendo pesquisar mais sobre o assunto, sobre as culturas, sobre a origem, sobre como estão relacionadas a situação climática e as produções agrárias”, afirmou Elineide, que também trabalha na terra de propriedade da família, onde são cultivados alimentos como mandioca, feijão e milho e há criação de galinhas, bovinos e equinos, todos para consumo próprio.
Formação da equipe de pesquisadores
Em andamento desde setembro, a pesquisa integra uma ação maior denominada “Mudanças Climáticas em face do Reconhecimento dos Territórios Negros”, de iniciativa da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), em parceria com o Instituto de Clima e Sociedade (ICS). Segundo a coordenadora do Neabi do Campus Penedo, Eliza Vianna, foi por e-mail que o setor recebeu a informação da chamada pública de manifestação de interesse, voltada para os Neabi's dos Institutos Federais situados na região semiárida do Brasil.
“Como a área de conhecimento do projeto não estava entre as áreas dos docentes que compõem o Neabi do campus, convidamos então a professora Maira Egito, do curso de Meio Ambiente, e o professor Lucas Suassuna, da disciplina Geografia, para pensarem juntos com a gente e formularem a proposta inicial submetida à ABPN. Com a aprovação do projeto, ambos passaram a fazer parte do núcleo formalmente, assim como os estudantes bolsistas”, relatou Eliza, que é da área de História.
No caso dos estudantes, a escolha seguiu o critério inicial da própria chamada pública, com relação ao local de origem e residência dos envolvidos. O documento estabelece que um dos principais objetivos da ação é contribuir com o conhecimento e organização de pesquisadores negros e pesquisadores quilombolas, nos estudos sobre Racismo Ambiental e Mudanças Climáticas, com análises dos impactos sobre os territórios negros.
“Para identificar os estudantes quilombolas que pudessem integrar a equipe, contamos com a ajuda das coordenações de Registro e Apoio Acadêmico. A partir daí, checamos o interesse deles em participar da pesquisa, considerando seu desempenho escolar, e também as condições de acesso à internet, já que o plano de trabalho do projeto seguirá de forma remota até a sua conclusão, em fevereiro de 2021”, disse a coordenadora do Neabi.
Os outros cinco alunos envolvidos na pesquisa são Djayane Silva, Genisson Matheus Santos e Gustavo Albert Vital – que assim como Elineide residem no Tabuleiro dos Negros –, Emilly Cristhiny Teles e Joana Calixto Medeiros, pertencentes a outras duas comunidades quilombolas: o Oiteiro, na zona urbana de Penedo, e Pixaim, na zona rural de Piaçabuçu. A egressa que completa o grupo é a técnica em Meio Ambiente e moradora do Tabuleiro, Maria Valquiria dos Santos, hoje graduanda em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal).
Jovem negra e primeira da família a ingressar no ensino superior, Valquiria foi convidada para integrar a equipe de afrocientistas devido à trajetória de envolvimento nas ações de extensão que o Ifal Penedo executa em sua comunidade. Egressa da turma de 2015, ela participou de tais projetos durante os quatro anos de seu curso técnico, o que a fez despertar para a importância de se reconhecer quilombola e de ser uma pessoa ativa nas questões que perpassam o Tabuleiro dos Negros.
“Ao final do curso, meu TCC não poderia ser outro. Eu sabia que a troca maior que eu poderia dar para minha comunidade era através de meu trabalho de conclusão, porque seria o primeiro documento de alguém pertencente ao povoado, falando sobre o território, sobre a relação com a cana-de-açúcar, sobre agricultura, sobre a vivência das pessoas”, destacou a egressa, referindo-se ao TCC apresentado há pouco mais de um ano e realizado em dupla com seu então colega de curso técnico, Alysson Melo, sob a orientação do professor de Geografia, Carlos Marcelo Gomes.
Sobre a pesquisa em andamento
A pesquisa traz como objetivo geral investigar a variabilidade e mudança do clima e suas relações com as práticas agrárias nos territórios quilombolas da microrregião de Penedo, tendo como área específica de estudo o povoado Tabuleiro dos Negros, onde vivem cerca de 400 famílias. A comunidade é reconhecida e certificada pela Fundação Cultural Palmares desde 2007, e boa parte das pessoas que lá residem lançam mão de técnicas de cultivo e extrativismo, unindo práticas tradicionais e conhecimento popular no uso da terra.
Seja para consumo próprio ou fonte de renda, a agricultura familiar se faz presente no cotidiano do povoado quilombola, e o projeto do Neabi considera justamente esse aspecto, na tentativa de entender como a comunidade lida com a dinâmica climática. A partir da sistematização dessas estratégias de convívio e dos problemas relatados, o estudo buscará contribuir com a mitigação dos impactos, de forma a melhorar essa vivência agrária no território quilombola.
“Vamos investigar primeiro as evidências ou indícios de mudanças climáticas na localidade, com os bolsistas participando ativamente desse processo, porque, enquanto moradores do povoado, são eles que farão todo o trabalho de campo, coletando dados de clima e relatando a percepção deles sobre a comunidade. A ideia é que esses jovens pesquisadores quilombolas organizem informações sobre como a comunidade, do ponto de vista das práticas agrárias, se adapta ou convive com essa variabilidade e mudança do clima”, explicou o professor Lucas Suassuna.
O trabalho de coleta in loco começou efetivamente na semana passada, com Djayane, Elineide, Genisson, Gustavo e Maria Valquiria indo a campo, inicialmente, separados. Esta semana, a atividade aconteceu em grupo, seguindo as recomendações da Organização Mundial de Saúde para prevenção da Covid-19. “Recebemos um kit com material de estudo, identificação do projeto e segurança para circularmos em nossa comunidade”, informou a egressa Valquiria.
Por residirem em outras comunidades, e pelo caráter remoto da pesquisa, as alunas Emilly e Joana ficaram incumbidas da organização dos dados coletados. Conforme o cronograma do projeto, essa etapa de campo se estenderá até o mês de janeiro, com informações colhidas semanalmente de forma individual ou em grupo. Somam-se a essa investigação científica os dados climáticos da plataforma web do Banco de Dados Meteorológicos para Ensino e Pesquisa (BDMEP), da Agência Nacional de Águas (ANA) e das séries climáticas da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) .
A partir das informações coletadas e da percepção e análise dos estudantes sobre as práticas de convivência em relação à agricultura na comunidade, será elaborado uma espécie de quadro síntese com os principais saberes tradicionais e as formas de uso da terra. “Esse quadro vai servir como um banco de dados para a comunidade sobre a maneira como ela se organiza. Com essa síntese, ela poderá visualizar como tem se adaptado ou tem procurado se adaptar aos impactos das mudanças climáticas”, destacou o professor Lucas, que é mestre em Geografia, com doutorado em andamento na mesma área, e atua principalmente nos temas de climatologia geográfica, agroclimatologia, clima urbano e geotecnologias aplicadas aos estudos ambientais.
Além de buscar entender como as famílias quilombolas são impactadas pela mudança climática e tentam se defender para diminuir esse impacto, a pesquisa inclui a elaboração de produtos cartográficos. “Os estudantes vão produzir um mapeamento de uso da terra, que estará integrado à síntese elaborada antes. Esse mapa final seria uma espacialização das práticas que observaram na primeira etapa de campo do projeto, o que dará a eles um instrumento técnico importante, pois vão precisar fazer uma análise espacial, familiarizando-se com softwares de mapeamento”, afirmou o docente.
Lucas Suassuna ressaltou que, do ponto de vista metodológico, trata-se de um trabalho que está exigindo da equipe de bolsistas um esforço grande. “Eles estão tendo que se apropriar de linguagem científica, de técnicas de interpretação de artigo científico, de trabalho de campo na comunidade, além do arsenal técnico, como o uso de aplicativo de georreferenciamento de imagens e sistema de informação geográfica. A ideia é que nós, orientadores, forneçamos os instrumentos para que eles se tornem pesquisadores, ganhem cada vez mais autonomia e consigam contribuir com a realidade deles”, destacou.
No decorrer dos dois primeiros meses de execução do projeto, toda a equipe participou de um curso de formação realizado pela ABPN, com foco nos três eixos orientadores da linha temática geral: Clima, Ambiente e Territórios Negros. “Depois do curso, fizemos também uma oficina de escrita e outra sobre qual aplicativo usar em campo para a gente medir a altitude e longitude sem precisar de dados móveis, porque não é em todos os lugares da comunidade que o telefone celular conecta”, completou a bolsista Valquiria.
Ao final da pesquisa, além da elaboração de produtos cartográficos, os principais resultados do projeto renderão um artigo científico, conforme previsto no plano de trabalho.
Para explicar a realização do estudo, dois dos bolsistas – Emilly Cristhiny e Genisson Matheus – gravaram um vídeo publicado no último mês de novembro, na rede social do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas. Para conferir, acesse o Instagram @neabi_ifal.penedo.