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O legado da 'Literatura Pandêmica' ignorado pelo Estado Moderno

Obras sobre pragas remontam os períodos grego-romano, feudal, moderno e chegam a prever futuras pandemias

publicado: 06/04/2020 15h59, última modificação: 09/04/2020 08h54

Até 30 de novembro de 2019, as tecnologias da informação, a sociedade de consumo e a globalização dos mais diversificados produtos lançados, simultaneamente nas ricas e pobres das nações, tinham domínio absoluto sobre o planeta Terra. Mas, a partir de 1º de dezembro daquele ano, a microbiologia entrou na vida das pessoas. Introduziu no ar o novo coronavírus, causador da Covid-19, um dos códigos virais mais letais, entre os já demonstrados na história.

Enquanto o Estado Moderno, reconhecido no século 15, havia omitido a morte de milhões de pessoas por doenças infecciosas, a "Literatura Pandêmica" deixou legados da dramática situação do ser humano em forma de epopeias, contos, romances, artigos e poesias. Nesta quarta reportagem especial da série 'Ifal versus corona', seguem algumas das reflexões registradas pela humanidade, por meio da Literatura.

Na opinião do professor de Filosofia do Campus Murici, André Sousa, a literatura que aborda temas mais conflitantes com o quadro político-econômico, historicamente,  sempre foi descredenciada por setores de interesses comuns. “E, certamente, a história mostra que, apesar das grandes obras serem reconhecidas no mundo inteiro  e que envolverem questões sanitárias, prevalece o poder de setores econômicos para desviar o foco da questão mais séria e que envolve vidas humanas”, declarou o docente.

André cita duas obras literárias que representam um alerta à situação que o mundo vive, que são os livros "Ensaio sobre a Cegueira" (1995), do escritor português José Saramago, que narra a história da epidemia de cegueira branca que se espalha por uma cidade, causando um grande colapso na vida das pessoas e abalando as estruturas sociais; e "A Peste", de Albert Camus que, segundo ele, a uma das obras mais lidas nos Estados Unidos, na atualidade.

"No momento atual estamos assistindo a essa tentativa de descredenciar o papel da imprensa, que é acusada de desestimular a economia nacional em detrimento da saúde da população. No início do século 20, houve a Revolta da Vacina, também estimulada por grupos econômicos que tentaram evitar que população  se protegesse contra doenças. Enfim, a literatura alertou a humanidade por meio do real e da ficção sobre as catástrofes no mundo, mas setores com interesses comuns conseguiram omitir esses fatos ao lançarem  grupos sociais contra outros”, ressaltou André Sousa.

O professor de Português-Literatura, Marcos Serafim, diretor-geral do Campus Batalha, também concorda  que a literatura é ignorada no momento em que enfoca o sentimento universal do homem, composto por amor, tristeza, saudade, distanciamento e solidão. Ele  destaca, entre as obras que trazem relatos literários que serviram como alerta ao mundo, o livro "Amor em Tempos de Cólera", de Gabriel Garcia Marquez, "A Peste", de Albert Camus, e até obras que, segundo ele, se não se referem às pragas mas aponta, por meio da ficção, a necessidade de homem se valorizar. Ele cita "Metamorfose", de Franz Kafka, na qual o homem se transforma em inseto e revela um indivíduo isolado do seu meio e despido de sua humanidade..

Confira mais reflexões abaixo:

Ilíada

Os primeiros relatos de pandemia no mundo têm como referência o poema Ilíada, do grego Homero que segundo historiadores viveu, entre a Grécia e a Turquia, no século 8 antes de Cristo. Considerado o mais antigo e extenso documento literário grego do mundo ocidental, Ilíada é constituída é constituída por 15.693 versos com narrativa sobre a Guerra de Tróia entre gregos de Atenas e Esparta. Segundo Mary Beard, professora da Literatura Clássica da Universidade de Cambridge, estudiosos modernos dizem que a razão pela qual Atenas perdeu a guerra foi devido à sua população ter sido dizimada por uma praga que matou o líder ateniense Péricles. No meio da Guerra de Troia, o sacerdote Trojan Chryses pede ajuda do deus Apolo para ajudá-lo a resgatar sua filha, Chryseis - que Agamenon havia raptado como escrava sexual. E Apollo responde enviando uma praga que somente cessou com a libertação da mulher.

Decameron

Depois dessa obra, a saga pandêmica registrada na história prossegue na idade média, em plena época do feudalismo ocasião em que os senhores da terra provocaram desmatamento de toda a Europa para cultivo de cereais e criação de gado. A Peste Negra ou Bubônica, em 1338 matou 75 milhões de pessoas. Em alguns lugares da Inglaterra e da Itália, entre 60 e 90% da população foi dizimada. O escritor italiano Giovanni Bocaccio viveu essa época e nos deu como legado o livro Decameron, de 1353. Na obra, Bocaccio conta a vida de sete mulheres e três homens em uma vila toscana de Florença que à medida que a doença se espalha resolvem se distrair em atos de bebedeira e de sexo durante o refúgio. Entre as 100 histórias contadas, o italiano narra o cotidiano dramático da população florentina. A população europeia tratou a Peste Negra como castigo de Deus. “Naquela época cuidado algum valeu nem importou qualquer providência humana. Proibiu-se a entrada de enfermo. Muitos conselhos se distribuíram para o bom estado sanitário. De nada valeram as súplicas”. Segundo Bocaccio, os humildes em grande número se juntam para orar por proteção de Deus e o contágio aumentou ainda mais a pestilência.

O escritor atribui ao Oriente a origem da doença que se caracterizava por sangue pelo nariz, inchaço na virilha e axilas, alguns em forma de maçã ou ovo e daí vem o nome bubônica, em formas de bulbos. Depois surgiram manchas escuras na boca de quem que fosse, rico ou pobre e surgiu o nome Peste Negra. Os que não conseguiram se refugiar morriam nas ruas, nas plantações ou onde quer que estivesse. Os cultivos se reproduziam e animais vagando pelas ruas vazias tinham comidas de sobra e engordavam e morriam se misturando aos cadáveres humanos. Mais de 100 mil pessoas morreram em Florença.

Poema de Saadi Shirazi

Do lado oriental, Hamid Dabashi, o  professor de Estudos Iranianos e Literatura Comparada na Universidade de Columbia-EUA registra um poema de Saadi Shirazi, poeta persa, nascido em 1213. A obra que surgiu cerca de um século antes de Boccaccio e aborda a praga e fome em Damasco, no Irã que matou milhares de pessoas, inclusive quem era abastecido por alimentos, considerados ricos.

Seres humanos são membros de uma união (um corpo)

Uma essência, uma alma na criação.

Se um membro pela dor é arrastado

Todos os outros também são afetados

Você, que não sente a dor do outro,

Perderá o direito de chamar-se ser humano.

 

Com o Renascimento ou Estado Moderno, no século 15 (1400) os relatos passaram ser a audácia do homem por meio do descobrimento do continente americano, as grandes invenções, as navegações e a predominância da ciência sobre a religião. Mas, Geoffrey Chaucer interrompeu o hiato e enfatizou em The Canterbury Contos (Contos de Cantuária - 1659-1731) uma detalhada narrativa de eventos, anedotas e estatísticas sobre a grande praga de Londres de 1665 e que vitimou entre 75.000 a 100.000 pessoas, uma infecção causada pela bactéria yersínia pestis , transmitida via um rato.

Deste período até o século 18, não são registradas obras sobre praga no mundo, talvez pela adoção dos estados absolutistas dominados por reinados truculentos ou déspotas.

O Último Homem

Registros pandêmicos somente ressurgiram como romance em 1826, com Mary Shelley, autora de autora de Frankenstein, por meio de um gênero literário chamado Literatura do Apocalipse. Shelley  foi precursora em 1826 do romance pandêmico e em  The Last Man cita a peste negra, porém na Inglaterra. Na obra, o personagem principal é um aristocrata inglês chamado Lionel Verney que vive ao surgimento de uma pandemia global em 2073 até o início do século 22, quando ele obtém o status de O Último Homem em um mundo desprovido de pessoas.

O italiano Alexandre Manzoni publicou, em 1848, Storia della Colonna infame , sobre detalhes da praga do século 17 em Milão. Em 1912, outro romance apocalíptico chamado A Praga Escarlate, do norte-americano Edgar Allan Poe, imagina um surto de febre hemorrágica em 2013, chamado de Morte Vermelha que destrói a grande maioria da população mundial.

Em 1918, surgiu a gripe espanhola que tirou a vida de 56 milhões de habitantes no mundo. A doença surgiu durante a Primeira Guerra Mundial e os soldados dos países europeus envolvidos foram a maioria das vítimas fatais. Os sobreviventes, principalmente os marinheiros, foram responsáveis pelos contágios a outros países, inclusive, ao Brasil. O escritor Ruy Castro conta na obra “O Carnaval da Guerra e da Gripe (2019) ” como a população fluminense se comportou diante de uma doença que surgiu poucos meses antes do carnaval. A doença matou milhares, mas não tirou o brilho da festa momesca do jeito que o carioca gosta.

No livro ele conta que, entre os mortos da doença estiveram a filha Shophie de Sigmund Freud, na Áustria, Na Alemanha, o economista e escritor Marx Weber. Em Portugal, as crianças Francisca e Jacinto do “Milagre de Fátima”, a primeira-dama dos EUA, Rose Cleveland e os irmãos  John e Horace Dodge, magnatas da indústria automobilística norte-americana. No Brasil, o vírus matou o poeta Olavo Bilac que sofria de problemas cardíacos agravados pelo contágio da gripe espanhola. Também perderam a vida, o craque Belfort Duarte, jogador do América-RJ, entre outros magnatas da economia fluiminense. Ao todo, segundo Ruy Castro foram mortas 15 mil pessoas no Rio de Janeiro.

No Brasil, a gripe espanhola chegou por meio do navio Demerara, um correio britânico, vindo de Lisboa e que havia atracado em Dakar, capital do Senegal. Os cerca de 200 tripulantes, segundo Castro, saíram do navio foram para a Praça Mauá, próximo do porto, onde retiram a noite nas gafieiras, beijaram as mulheres. Em questão de dias, a doença se espalhou. O alerta demorou a ser dado.  O quinino, espécie de água tônica caseira começou a ser recomendado até pelos médicos como modo de “destroncar” os peitos. Todo o tipo de purgante foi inventado, mas não diminui a mortalidade. A empresa química Bayer ofereceu Fenacetina como “tiro e queda” contra a Influenza com promessa de cura como um raio, mas não teve jeito. Capitais também foram afetadas, mas sem a intensidade do Rio de Janeiro que teve que fechar hospitais por falta de leitos. Enterros só eram acompanhados por parentes e até sepultamentos ficaram impraticáveis por falta de coveiros, alguns mortos outros doentes e em quarentena.

A Peste

A Peste de Albert Camus, obra publicada em 1947 contra a história de trabalhadores que descobrem a solidariedade em meio a uma peste que assola a cidade de Oran, na Argélia. No romance, o autor questiona os destinos da natureza provocada pela condição humana.

Gripe em Alagoas

A situação em Alagoas é contada pelo poeta e escritor Jorge de Lima em uma entrevista no matutino Jornal de Alagoas. O médico participou da campanha de salvamento de vidas e também foi vítima da Influenza, mas sobreviveu. “O doente começa a sentir dores em todo o corpo, deixando catarro branco, garganta inflamada e dor abdominal”, declarou na edição do jornal, de 30 de outubro de 1918.  Porém, as escassas informações levaram o poeta a vaticinar um dado que não se confirma do ponto de vista científico, nem com a gripe espanhola nem com o coronavírus. Jorge de Lima declarou no jornal: “acontece, porém que, devido as condições especiais do nosso clima, a moléstia em questão não se manifesta aqui com a mesma gravidade que em certas regiões da Europa”.

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